quarta-feira, setembro 30, 2020

 A articulação total dos passos perdidos torna-se numa orquestra gerida por ancas difusas. Nessa globalização de emoções existe um movimento que procura fixar-se, irredutível, num coração mais sensível. Até lá, em mais do que um sentido, há extravasamentos autónomos de liberdade cromática e olfativa. 

Até lá, constate-se, a lua encheu duas vezes, marejando-nos os olhos com a sua ilicitude romântica. Recordam-se noites assim, dias passados.

A articulação brutal de memórias em franco movimento de expansão. Uma língua rebatida pela falta de vigor no seu exercício, uma sensação térrea de não se pertencer a nada, a contabilidade absurda de um suave ruído, um roçagar de dedos por obras de arte em prosa. Expansão e Dalila.

Ao longe, a luz da lua segue-nos para todo o lado. O mundo está tranquilo e, ainda assim, figura num estilo caótico que teima em humanizar pretensões antigas de quem não tem direito à temporalidade, apenas a permanência de uma garantia, de uma sincera certeza.

Nem sempre se pode contar com o amanhã dos sonhos e das esperanças prematuras.

É um contrassenso solidificar passados compostos em grãos mínimos de contrapartidas sabujas. Com vigor se conecta o presente que, como a luz da lua, nos segue para todo o lado. 

 Tens nome de cidade e veias salientes de vida. Um riso de vida. A cor das tuas emoções transborda num sorriso. Acabei de saber que foste uma flor que cresceu em lugares escuros e que, aos poucos, abraça a luz. Cresces melhor assim.

Gosto de te poder acompanhar nesse abraço tão teu que, ao senti-lo, estremeço. A vida menstrua-se, porém, em ciclos. 

Tens ainda nome de cidade e é das ruínas do teu nome que reergo os meus próprios sentidos, como se fosse possível apagar as marcas dos passos ou descascar camadas da memória, uma a uma.

Do sono saio desta sina.

 Procuro-te.

No meio da multidão de flores diurnas que passam e que riem, és a flor que desabrocha à noite. Sair de casa tarde, habituar-me ao escuro, ao tumulto existencial em forma de pés que calcam e calcam, imparáveis. E, a cada passo, cuidadosamente evitar as poças de água em que certamente nos afogaríamos.

Encontro-te.

Tens todo o ar de quem sabia. O ar de quem sabe ter sido encontrada, o olhar de certezas insossas, incertas, torpe. O olhar teu de memórias ainda por viver. Tens uma mão de carícias passageiras na qual o passado tem uma importância relativa no peso total da tua ternura.

Procuro-te.

Entre grossos pingos de chuva que nos alimentem, entre o refrescar do calor abafador de um monte elevado de situações a que chamamos de vida. Daqui criaremos uma exuberante selva, só nossa. Seremos como um tigre na Ásia ou um ponteiro sobre os segundos. Caminho contigo, agora. O nosso lugar não é aqui.

Tripulamos um beijo como o nosso e não pensamos no desperdício que foi ter estado tanto tempo sem ele.

Deixo sempre para trás o frio da minha vida em comparação com o calor do teu abraço, na certeza injusta de seres forte, tão forte, que és inclusivamente capaz de afastar, com os teus próprios punhos, punhados de fantasmas meus.

O calor faz-nos, fez-nos, alimenta-nos. Não me sinto a ir de encontro a. Estou de fugida. O nós que somos dá um sentido aquecido à fantasia, a sonhos que se guardam e que esperam ansiosamente quietos até ao final do dia. 

É injusto, eu sei. Tu dizes-mo também. E é verdade também, sabemo-lo ambos no sono são desta vida.


Júpiter puxa por mim...

diz o Rick Levine, senhor que desconhecia mas que manda diariamente postas-de-bacalhau sobre a minha vida - e, em formatação, sobre a vida de tantos outros que, como eu, aqui pousam os olhos à laia de bóia. Diz o senhor: "If you aren't willing to take on a certain level of responsibility today, something may happen that requires you to step up to the plate and do what you should have already done. You can thank taskmaster Saturn for backing into your sign and offering a healing course in self-discipline. Use your common sense and don't wait until it's too late; take action while you still have time to be successful." Animador. Uma espécie de sal grosso em ferida recente!

 "Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas"

Este ano não faz sentido. Nem o ano anterior. Nada faz sentido. 

Janeiro foi o mês do chove-não-chove, o mês do frio e do calor, o mês do vou-não-vou. 

Decidi ir.

Decidi aceitar este ano e o resto da minha vida. Resolvi dá-la ao acaso mas concentrado no presente. 

Não sei se acredite no presente, porém. Não sei bem.

Nasci anarquicamente. 

 Existe, por aí, alguém que espera, que aguarda veladamente na escuridão do tempo. De seu próprio tempo. 

Disse alguém como poderia muito bem ter dito algo. Uma entidade. Um medo. Antigo como o tempo.

De todos os dias, a Sexta Feira é aquele que passa mais de fugida e, simultaneamente, mais devagar. Há, no ar, partículas suspensas de tensão e sudação. Nas bocas das pessoas mal se consegue esboçar um bom dia.

As Sextas feiras são senhoras de engarrafamentos e comboios lentos. Contam sempre histórias de encontros fugidios e de palavras mal trocadas. Mostram imagens de olhares de maior desejo mescladas com meigas fiadas de cansaço.

Sonhei sempre muito bem à Sexta, embora nem sempre fosse confortado com a perspetiva de ter, pela frente, dois dias sem fazer muito. A vida é dura, dizem. E sim. A vida assim é mesmo muito dura. Um vida sem sonhos é tortura.

Acho que te conheci a uma Sexta. Desculpa a imprecisão da minha memória. Se assim não foi ao certo, pareceu-me mesmo ter sido nesse dia da semana. Se não foi, dispenso a memória e escolho definitivamente um presente contigo. O presente que és tu!

Há, certamente, um ajuste de contas a fazer com este presente.

Se abrir bem os olhos, verei ao longe uma resposta. Quanto mais longe estiver, mais próxima estará de mim. Ou vice-versa.

Não sei muito bem o que terá acontecido ao rapaz que tocava saxofone que conseguia afugentar todos os gatos das redondezas com os suaves trinados que brotavam da sua música, da senhora da padaria que pintava o cabelo de louro e despachava os clientes com célere simpatia. Nem sequer sei muito bem o que me aconteceu.

Sei que tudo isto se deu a uma Sexta, o meu dia da semana preferido, vá lá. Sei também que nada mudará facilmente, embora nada continue igual.

Uma vida sem sonhos não revela a origem de pastelarias. Sem eles, a vida é uma tortura. Sem eles, tudo não passa de um desenrolar penoso de ordem, disciplina e cansaço. Fatias de cansaço despachadas com celeridade e simpatia.

Assim é a minha vida sem ti. A minha vida sem ti foi o mesmo. Sempre o mesmo.