quarta-feira, setembro 30, 2020

 Procuro-te.

No meio da multidão de flores diurnas que passam e que riem, és a flor que desabrocha à noite. Sair de casa tarde, habituar-me ao escuro, ao tumulto existencial em forma de pés que calcam e calcam, imparáveis. E, a cada passo, cuidadosamente evitar as poças de água em que certamente nos afogaríamos.

Encontro-te.

Tens todo o ar de quem sabia. O ar de quem sabe ter sido encontrada, o olhar de certezas insossas, incertas, torpe. O olhar teu de memórias ainda por viver. Tens uma mão de carícias passageiras na qual o passado tem uma importância relativa no peso total da tua ternura.

Procuro-te.

Entre grossos pingos de chuva que nos alimentem, entre o refrescar do calor abafador de um monte elevado de situações a que chamamos de vida. Daqui criaremos uma exuberante selva, só nossa. Seremos como um tigre na Ásia ou um ponteiro sobre os segundos. Caminho contigo, agora. O nosso lugar não é aqui.

Tripulamos um beijo como o nosso e não pensamos no desperdício que foi ter estado tanto tempo sem ele.

Deixo sempre para trás o frio da minha vida em comparação com o calor do teu abraço, na certeza injusta de seres forte, tão forte, que és inclusivamente capaz de afastar, com os teus próprios punhos, punhados de fantasmas meus.

O calor faz-nos, fez-nos, alimenta-nos. Não me sinto a ir de encontro a. Estou de fugida. O nós que somos dá um sentido aquecido à fantasia, a sonhos que se guardam e que esperam ansiosamente quietos até ao final do dia. 

É injusto, eu sei. Tu dizes-mo também. E é verdade também, sabemo-lo ambos no sono são desta vida.


1 comentário:

Pedro Serpa disse...

Tenho ideia de ter lido isto, em tempos, num papel :)